quinta-feira, 17 de abril de 2008

030 Ao falar


Falar pode ser um pecado, provocar a quebra do encanto. No entanto há sempre quem se predisponha a falar, sem medo das consequências, com a necessária pureza no coração, contra os demónios e anjos de ocasião.

Falar pode ser um pecado atroz, mas se não se falar, como é que se adivinha o que vai dentro dos corações alheios? Será que a teria conhecido melhor sem lhe falar? Talvez o olhar fosse suficiente, o charme e um pouco de sexo para apimentar a coisa bastassem. Mas quis-lhe falar, sem ser pelo toque das línguas molhadas, dos lábios sedentos de desejo.

Quem me dera ter o magnetismo, charme natural sem ter que falar. Dispensava ter que voltar a falar, sem ser em pleno acto, em pleno suspiro, uivando de prazer em vez da dor que me querem impingir.

E sem falar sigo rumo ao futuro, sempre incerto, disforme por opção, masoquista por convicção, nem sabia que a tinha assim tão vincada.

Adoro música, não propriamente os instrumentais do tempo do Mozart, mas na ditadura do meu espaço, do meu ser que não quero saber quando vai terminar, apenas abusar dele o mais que puder.

Falar até pode ser um privilégio, mas sabê-lo ainda é mais. Prefiro o silêncio, mesmo sendo apelidado de cobarde. A palavra arrojada prefiro escrevê-la, dá menos trabalho, o espírito inquieta-se menos. Pura ilusão?

Quantas noites ela quis que eu falasse, quanto ódio destilou. Quanta solidão vivia dentro de mim, por não querer mais falar, apenas afastá-la, irremediavelmente.

Falar afinal é um dom, se o for com sinceridade uma virtude, digam o que disserem. Afinal vivemos de defeitos expostos e virtudes escondidas atrás da porta entreaberta.

Gosto do mistério, do silêncio, de fazer como bem me apetecer para vibrar, desgraçar, apenas viver.

Falar despoleta, provoca consequências, é um desatino. Por isso odeio falar, esforçar-me para conviver sendo obrigado a falar.

Bastariam trocas de olhares, toque e cheiro, regresso ao mundo primitivo, sem qualquer aquecimento global acelerado. quanta hipocrisia dos que falam apenas por falar. Egoístas.

Falar, falar, falar! Palavras perdidas, interesses e cinismo abundam na boca dos bem falantes.

Falar é um pecado e os pecados pagam-se, por vezes nunca, muitas das vezes sem parar e sem justificação.

12-07-2004

Acompanhante musical: Talking Heads "Burning Down the House"

Sem comentários: