domingo, 16 de novembro de 2008

045 O poeta vai ao psiquiatra e depois não avia a receita

1. O sono

Quando adormeces, procuras desequilibrar o organismo, dormindo pouco, como se a falta de lucidez te enterrasse numa prisão sem fim. Porventura te esqueces que a medonha realidade que desgasta a tua alma indispondo a o teu corpo até desfalecer é a razão das trevas que te habitam os dias e que, pelo menos ao dormires, te esqueces das rugas e dos conselhos castradores dos que querem comandar a tua vontade de viver.

Vejo-te dia após dia a definhar a vontade de morrer, por isso te aviso que o melhor será tomares consciência que deves mesmo aproveitar o equilíbrio entre o optismismo militante que te habita e a realidade do nada. E esse nada para ti é um mero estratagema que urdiste para causar o afastamento, consistente e ameaçador como se o fim do mundo estivesse aí.

Quando descansas a vontade de fazer crescer o orgulho e te saltam para cima, sentes que apesar dos teus super-poderes uma simples conversa revelaria o teu conhecimento. Porém insistem em fazer de ti uva pisada à antiga, abusando da tua quase inexistente paciência, apesar da enganadora moleza, da absurda tentação de encontrar inconsistência.

É claro que com o passar dos anos começam a ser profunda raridade, digna de algum libro obtuso de recordes, os dias em que te vais lembrando dos sonhos, como se ao deitar entrasses numa terra de ninguém onde apenas consegues imaginar pesadelos à velocidade do som, que te maltratam os dias passados em abjecta rotina de sombrias alucinações.



2. O Amor

Gostas de ver as mulheres passar, mais não seja para informar o teu cérebro de mais umas quantas homenagens a fazer. Não que isso seja uma obrigação ou que elas depois o mereçam. Não, apenas se trata de apreciar cada gesto que saia do seu ser, o modo como cuidam do seu visual, a auto-estima mesmo sem a estima, em piloto automático e era tão simples mudar isso.

Gostas de ter muito espaço livre à tua volta. Por exemplo, Lisboa, a tua cidade, apenas porque foi lá que nasceste. No entanto permite-te sentar num banco sem jardim e gastar o tempo em duvidosas tentativas de criar uma qualquer coisa de que alguém vá gostar, não pela moda do gosto, mas absorver. Gostar, mas daqueles gostos que nascem do nada e se entranham por entre palavras mais doces que apenas cortantes.

Gostas mesmo que se lembrem que existes, de uma pequena prenda, assim à antiga que mantenha as tradições do passado, algo que se teima em queimar fazendo desaparecer nas brumas desvanecidas um mero gosto. Talvez seja fantochada e devesses acreditar que os beijos e os abraços valem sempre mais do que os meros artefactos que depois arrumas na prateleira habitual. Como se o amor fosse um hábito vulgar que se vai recriando consoante as vontades alucinadas de um qualquer iluminado, que vai ganhando poder.

Amor por troca de vida e dinheiro.



3. Voz

Sabes bem que muitas vezes és literalmente engolido pelo silêncio, sem que isso signifique ouro ou latão.

Sabes bem que muitas vezes o que te apetece é dar um valente berro até que as cordas vocais se soltem e as pastilhas que compraste um dia para a rouquidão tenham enfim a sua utilidade mesmo na véspera de acabar o prazo.

Já deste esse berro e mesmo que o medo que porventura se tenha instalado nos incrédulos que te rodeavam tenha sido ilusório, uma suave sensação de desconforto apoderou-se por momentos deles. De ti sobrou apenas a satisfação de teres solto essa energia presa nos confins da tua alma encarcerada em vazios militantes.

Não és de grandes conversas, mesmo que depois soltes a pessoa normal que tens, como nem todos os outros ditos normais têm.

Sobra-te o egocentrismo e de te achares com capacidades para além do do vulgar. Como se os poemas de amor só pudessem ser bem declamados por machos dominantes em direcção às fêmeas excitadas. Sabes bem que o normal nem sempre é aquilo que aparenta ser em cada ser que pensas conhecer.

Passas os dias em quase silêncio como que a preparar esse instrumento de sopro algo desafinado chamado voz. Mas acreditas que de dentro da alma hão-de um dia sair outras palavras que se tornarão mágicas em fabulosas confluências de destinos, consubstanciadas em aquecidas tertúlias de charme e encanto que irresistivelmente lançarás para cima de uma donzela incauta que se lembrará de repente de se fazer de difícil porque o é, e também porque a luta pela sua própria conquista lhe aumenta a líbido.

Eis então a voz encantada do poeta que se levantará no meio da tempestade, para que possas, por fim, ser feliz, algo que te foge desde sempre, incompreensivelmente



Acompanhante musical: Arcade Fire - No cars go

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