quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

064 Nos meus cabelos



Aquele simples gesto de alguns dedos, femininos, de se atravessarem em cabelos já com alguma desenvoltura tornou-se um carinho anacrónico, uma memória distante de algo simples que provocava momentos de puro prazer.

Talvez seja um pormenor sem importância quando se tem pela frente o fim do mundo, um pormenor cíclico que, de vez em quando, provoca eras glaciares na Terra.

Talvez fosse melhor o governo tomar essa medida drástica de obrigar os construtores a fazerem as casas com protecção especial anti-glaciar. Ideia tola, utópica, mas ao menos seria pioneiro em mais alguma coisa que as ilimitadas variantes de corrupção que animam os serões rotineiros do povo indiferente a qualquer tipo de questões.

Mas o que realmente faz falta é um pouco mais de afecto, de sentir os dedos, femininos, de uma qualquer menina doce, no trato, mulher no acto, guerreira no desbarato.

Talvez assim me escapasse da cabeça aquela ideia de tornar a minha cabeça igual à da multidão de monges budistas, mesmo sem as vestes laranjas ou o sentimento de deambular no meio da angústia da ditadura amarela.

Apenas um simples toque nos cabelos desses dedos tão macios e podia partir à conquista de um novo dia sem pensar sequer que a noite se pode tornar eterna e a medonha insónia apague os vestígios de uma réstia infame de rigoroso egoísmo retratado em doses amotinadas de desejo que apenas cegam a razão.

Pudera ter esses dedos que me cruzassem a vontade de te amar pelo que sempre entranhei, mesmo que a memória do que nunca toquei se torne um fardo insustentável.


Acompanhante musical: Caetano Veloso - Debaixo dos caracóis do seu cabelo

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